
Histologicamente
Não há como ter gratidão
Numa situação tão ingrata.
Ora veste-se de bem,
E toda hora maltrata.
Desmoraliza o homem,
A mulher, o velho, o menino…
É desaprumo infinito
Arrebentando o peito.
A cara dela ninguém vê.
Às vezes, só depois de muita dor sentir,
É que se pode definir
Sua presença no sujeito.
Tumor.
Doença carnal.
Maligno.
Rezamos para ser benigno,
E às vezes parece em vão.
Esse é o câncer, e toda sua humilhação,
Que coloca de joelhos,
Faz penar o cristão.
Histologicamente falando,
Numa língua “histoguêsa”,
Descrevo com detalhes,
E também com riqueza,
O trabalho que faço
E a sua beleza.
Minha missão,
Em meio a tanta interrogação,
É contribuir para a melhor solução.
Elevando a precisão dos laudos,
E a confiança dos envolvidos,
Se fui o escolhido,
Faço de todo coração.
Agarro no bisturi da precisão,
Sem ser cirurgião ou algo do tipo
E em pedaços vou elucidando,
Mostrando a cara do maligno
Seu tamanho,
Suas cores,
Seus conteúdos,
O pedaço bruto vou lapidando,
O transformando num diamante lindo.
Às vezes penso:
“Não faço muita coisa neste mundo…”
Mas paro e vejo o quão bonito é
Dedicar a vida a tantos desconhecidos.
Entrego meus diamantes
A um colega de profissão,
Que com zelo e perfeição,
Vai melhorando meus esculpidos,
Mergulhando cada interrogação
Em reagentes químicos.
Esse é o processamento de tecidos.
Formol, água, álcool,
Xilol, parafina,
Penetrando milímetro a milímetro.
Mas não se engane:
Não é assim que termino.
Entre ácidos, bases e tampões,
Construo a melhor resposta.
Visto o peito de gratidão
E cada paciente,
Oh, meu Deus,
Entrego em tuas mãos.
Pego os moldes da inclusão
E neles coloco pedaços obscuros,
Cheios de informação.
Tento ver.
Tento entender.
E no fim,
Resta apenas ajustar a posição.
Parece fácil?
Não é, não!
A parafina que preserva tudo é quente
E judia das minhas mãos.
Queima os dedos,
Mas aquece a alma.
E mais uma vez eu digo:
Faço de todo coração!
Sentado diante
De uma máquina rotineira,
Recebo os pedaços da questão.
Com delicadeza,
Agarro nas manivelas da bendita,
Passo várias vezes de preciso for,
e na lâmina coloco uma fina fita,
Preservando a nobreza do conteúdo.
Com orgulho,
Apresento a microtomia.
O preto e branco
Não trazem beleza,
Nem para a vida
Nem para a patologia.
Mergulho no rosa: eosina.
Mergulho no roxo: hematoxilina.
E assim vou colorindo e mostrando ao mundo,
A arte da histotecnologia.
Por fim, entrego a questão
A quem sabe responder:
O patologista.
De sua visão
Sai o veredito de morte ou de vida.
E pode ser
Que mais uma família
fique com o coração abatido.
Sabendo da batalha
Que terá de enfrentar.
Só de imaginar…
Me arrepia.
De tudo de ruim
Que essa doença nos traz,
Uma coisa boa existe:
Boas pessoas,
Excelentes profissionais,
Que cuidam do próximo
E sequer sabem de suas histórias.
E se não fosse nós?
Qual seria a resposta?
Por: Roberto Bentes
04/02/2025